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O Natal

13
Dez07

Para os leitores que permaneceram fiéis, falemos então de Natal e desse momento único do seu ciclo e festa que é a Consoada, tão importante para a comemoração natalícia que, sobre ela, existem dezenas de referências literárias. Já no seu tempo, Júlio Dinis, escritor considerado very much conservador pelas confrarias cultureiras, advertia para os assaltos cosmopolitas "E vós todos, a quem uma moda tola não constrangeu ainda a abandonar os hábitos que de pequenos contraístes, e festejais ainda o Natal de Cristo, segundo o estilo velho, continuai a manter genuínos esses costumes nacionais, que não resultará daí desdoiro para o vosso nome ou brasão." E descrevia o momento aguardado da noite: "Ceia de Natal! (...) ceia com tanto afã cozinhada, e com tão pouca vontade comida, falem embora contra ti os médicos e os gastrónomos eméritos, considerando uns a indigestibilidade dos teus cozinhados, outros o pouco delicado deles; reage contra as ideias novas que vêm da França e da Alemanha; cerra as fornalhas às iguarias exóticas e furta-te às mãos da estranha-geração de Vauteis, que aspiram a dominar pelos paladares o espírito nacional."

Como os Vauteis abundam por aí e o M.E. baniu dos exames Camões e Gil Vicente, por não estarem au point com os desígnios do nacional-cabotinismo educativo, um autor como Alberto Pimentel é, com certeza, considerado reaccionário pelos próceres que fizeram a instrução atingir o patamar da ignorância (ou nem isso, já que os gramáticos lêem pela cartilha do pensamento único e nem sabem quem tal autor é). Escreve Pimentel em "O Arco de Vandôma" «(...) o Cosme, muito satisfeito com a disciplina do seu exército, deu a voz de comando: Meus senhores, vamos para a mesa. O jantar patriarcal desse dia era obrigado a bacalhau cozinhado de todos os modos possíveis, não faltando nunca o prato subsidiário de grelos com ovos estrelados. E a sobremesa, também segundo o estilo, compreendia, além dos doces privativos do Natal, queijo londrino, nozes, alperches e ameixas de Elvas, figos do Algarve, passas de Alicante."

Em 1896, Júlio Brandão, no Conto "O Natal" (do livro "Farmácia Pires"), escrevia "Em casa é que era um burburinho hilare! Grandes travessas de bacalhau, bolos, grelos, grandes couves tronchudas - e o vinho roxo borbulhando nos copos. Depois o doce, os mexidos, os bolinhos de gerimú cor de laranja, o vinho branco, a canela e o mel, a consoada clássica do Minho."

Podemos compreender a tradição do Natal à mesa enquanto festa íntima, familiar, emotiva e gastronomicamente circunscrita a ementa a que os tripeiros perma-neciam ciosamente fiéis. A saída de casa para a missa da meia-noite era, para além do conteúdo religioso, a oportunidade do convívio com a vizinhança e, no fundo, a possibilidade - para os que abandonavam a quentura da lareira - do passeio higiénico, facilitando digestões e preparando estômagos para lambarices que, no regresso, a mesa posta oferecia.

Neste turbilhão de luzes, impulsos, apetências e desvarios consumistas, inebriantes e sedutores em que o Natal se transformou, o que ficou dessa terna e delicada alegria da noite de doçuras e reencontros? Apesar de tudo quanto lhe fize-ram, creio que, um século depois, a tradição permanece viva e de boa saúde em muitos lares. Apesar dos que negam o Natal pelas injustiças, os crimes contra o espírito do Homem. Apesar do descarnamento materialista da sua essência - seja em nome da modernização, do laicismo mais espúrio ou, sobretudo, do simples descrédito e achincalhamento das coisas nobres, belas e sublimes.

Apesar de tudo, o "fiel amigo" irá ser disputado (ainda que a peso de ouro), o bolo-rei sairá às toneladas, os aromas feitos de infância (ainda que em propriedade horizontal) das rabanadas e demais fritos, mais a aletria, continuarão a impregnar as casas da cidade. O Menino sorrirá bonacheirão na cena do Presépio de muitas escolas que não aderiram à pedagogia da indiferença e do laxismo, e de não poucos lares, coexistindo pacificamente com a árvore.

A estrela de Natal da igrejinha de Nevogilde alumiará as noites e - quem sabe? - outra estrela, maior e mais brilhante, em qualquer lugar, continuará a iluminar-nos o caminho naquele sentido expresso por Victor Hugo "Cada homem na noite caminha na direcção da luz." Bom Natal!

 

 

 

 

Hélder Pacheco, Professor e escritor

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